Archive for Agosto, 2007

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os amigos vão dar música neste blogue (IV)

Agosto 31, 2007

Depois do Hugo, da Liliana e da Carolina, é a vez do companheiro Sílvio Mendes, do Plantar Ideias, dizer de sua justiça em relação à música de 2007. Muito português, muito intimista. É assim o Sílvio, são assim os acordes do texto que segue abaixo. A ler.

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«’Quero que saibas que cago no amor’, dito assim.

A música começou por ser um ramo da matemática, depois cresceu, esticou bem o tronco, e infiltrou-se nos sentidos. Acho que é assim que se ama. Com matemática e física e música infinita. É assim que deve ser.

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Vivo na aresta do trauma, uma pequena desgraça corre-me por dentro: desde 1997 que tudo me sabe a pouco. E, contudo, desde esse ano que continuo a apaixonar-me violentamente pela marcha da sensibilidade. Não haja dúvidas, 97 é mesmo o ano da viragem. Radiohead ao leme e Ok Computer a deixar cicatrizes no mar. É por lá que os peixes espreitam o céu, é nessas fissuras que o homem mergulha a cabeça e tenta esquecer o tempo.
Mas veio o futuro, sem stress pós-traumático, apesar do trauma dos grandes. Estamos historicamente com duas mãos cheias de anos passadas. Linha salta

no tempo. E nem tudo é olhar para trás. Este desafio é simples, óbvio, de resposta rápida, nacionalista, anti-moralista e arrogante. O melhor de 2007 está dentro de portas, com título de álbum no longínquo ano de 1970. É só um título, bem sei, mas entre 70 e 97 haverá certamente alguma margem fantasiosa para corroborar este texto. É a matemática. Assinada por um homem que é uma fábula, o carnaval português a escrever, samba desajeitado na tremura dos joelhos, é tempo de gritá-lo: JP Simões (ex-Pop Dell’Arte, ex-Belle Chase Hotel, ex-Quinteto Tati) é fogo mesmo. O Silvóscar vai para a balada transgénica Se por acaso (me vires por aí). Porquê? Pela ternura infinita dos sentidos, porque o trovador não morre se não lhe faltar o amor, porque há a voz de Luanda Cozetti (Couple Coffee) a açucarar, porque vivo na aresta do trauma, por dentro, desde 1997. E porque são precisos dez anos para voltar a nascer uma música assim».

Sílvio Mendes

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os amigos vão dar música neste blogue (III)

Agosto 29, 2007

O terceiro tomo da série de textos sobre as músicas deste 2007 que ainda corre tem o cunho da amiga Carolina Lapa, autora do Immerse Your Soul in Love. Diz-se por aí que a Carolina tem cantarolado muito neste verão, reflexos de sol, felicidade e assim. E isso mostra-se nas escolhas musicais da menina. Confiram.

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«Carolina, o que levas no leitor de mp3? – É pop, senhor.

Exames. Festa. Festa. Exames. Jogos de cartas. Festa. Exames. Pessoas. Sofreguidão, sorver o ar com medo de que tudo terminasse. Exames.

Depois de toda a actividade da minha última época de exames (foi a melhor descrição que consegui arranjar) saquei da cartola um fim-de-semana de férias e mergulhei no trabalho diário aqui.

O cuco piou durante um mês e meio às 6:30 (entretanto parou porque o empalei com a raiva… hã, mentira. Comecei a trabalhar de tarde. WWF, eu estava a brincar…). Mesmo assim eu ia ter com o clã para palrar a noite toda… Um mês passado e assolou-me “Um supremíssimo cansaço. Íssimo, íssimo. íssimo, Cansaço…”.

Até agora ninguém compreende o porquê de tal exposição visceral da minha vida pessoal, mas isto eventualmente há-de chegar à música.

O que acontece? Acontece que tudo quanto é música cerebral pouco motiva quando o cérebro agoniza por um pouco de Centrum (abaixo as vitaminas placebo!). Sobra a música que faz mexer involuntariamente a cabeça, ou um pé. E onde a encontrei? A ver televisão, o meu momento de brutalização depois do trabalho. Zapping obsessivo e aparece um videoclip com dois meninos que vestiam umas t-shirts que mudavam os desenhos. E a música dizia “do the dance”. Li dias mais tarde no Y que eram os Justice, a nova dupla francesa electrónica a suceder ao trono dos Air e dos Daft Punk. Do álbum Cross, D.A.N.C.E. faz caminhar aos saltinhos e cantarolar Do The Dance ao estilo Michael “Thriller” Jackson (até se imagina o ladrilho do passeio a fazer luz).

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Outra música que me encheu as medidas é de 2006. Junior Boys. Retirada do álbum So This Is Goodbye, In The Morning começa com um sampler agudo e angustiado agarrado por uma bateria e um suspiro presente em todo o tema. Ouve-se uma voz que sussurra “too young” in the morning. A carga, a batida, o suspiro continuam numa cadência sexual. Gosto.

E acho que já escrevi demais. O Beja tinha dito dois parágrafos…»

Carolina Lapa

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a ouvir

Agosto 28, 2007

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(a)o pé do meu amor

Agosto 28, 2007

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os amigos vão dar música neste blogue (II)

Agosto 28, 2007

E cá está o segundo de uma série de textos sobre a música feita (ou escutada) nos meses que vão de 2007. Desta vez tem a assinatura da amiga Liliana Pacheco, do Miragens, e passeia-se essencialmente pelos concertos a que a autora teve o prazer de assistir este ano.

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“A minha ideia é que há música no ar, há música à nossa volta, o mundo está cheio de música e cada um tira para si simplesmente aquela de que precisa.”

Edward Elgar

«Há um espartilho: o tempo. Espartilho demasiado apertado, talvez. Mesmo assim, vou tentar cumprir esta prerrogativa e enumerar as músicas que mais me escoltaram no ano de 2007. Optei pelo critério do espectáculo ao vivo – porque este está a ser um ano excepcionalmente opulento em bons concertos.
Cedo a Cronos: The Magic Position, do álbum homónimo do Patrick Wolf. É datado de 2006, mas foi em Abril deste ano que assisti à sua performance no Theatro Circo. Se já achava piada, depois deste encontro não consegui mais existir sem ele: submergir com um Robin dos Bosques excêntrico, em florestas imaginárias e patinar com os acordes de um violino mágico.

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Segundo round: No Cars Go – Neon Bible, Arcade Fire. Esta escolha abrange o álbum todo, que, se como muitos o acusam, não trouxe a boa surpresa do primeiro, carrega às costas toda a envolvência que caracteriza a trupe canadiana. Escusado será dizer que a sua actuação no Super Bock Super Rock foi um dos momentos altos desta minha existência – não conseguia extravasar tanto êxtase depois de tamanha expectativa para os ver.
A performance a que mais vezes assisti este ano foi a dos portuenses Sizo, que lançaram há pouco o seu primeiro trabalho, Nice to Miss You. A proximidade geográfica facultou este facto. Também ajuda o vocalista João Guedes ser um animal de palco e o seu registo vir de encontro às minhas preferências.
Last but not least, The Cinematic Orchestra – To build a Home, do album de 2007, Ma Fleur. Os únicos desta lista que não tive o prazer de ver ao vivo, mas continuo na esperança – e já agora deixo aqui a sugestão ao milagreiro Paulo Brandão.
Despeço-me com uma citação (como tanto gosto): Schopennhauer para os meninos e para as meninas».

“A música é um exercício de metafísica inconsciente, no qual o espírito não sabe que está a fazer filosofia”.

Arthur Schopennhauer

Liliana Pacheco

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a amiga fotógrafa

Agosto 27, 2007

A Diana Ferreira há-de ser fotojornalista. Quer ela (ou queria, da última vez que falámos sobre isso) e espero eu. E porque há-de ser, e nada se faz sem trabalho, a Diana mostra aqui o uso que tem dado à objectiva nas suas últimas viagens. Deixo uma das fotografias que mais me cativou, uma bem simples, por sinal.

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lisboa, por josé cardoso pires

Agosto 27, 2007

Outro dia, na Fnac do Chiado, encontrei um livrinho que não sabia existir. Chamava-se Lisboa, Livro de Bordo – vozes, olhares, memorações e tinha a assinatura de José Cardoso Pires. A edição que tive em mãos era da colecção de livros de bolso da Dom Quixote, custava não mais que cinco euros.

Num qualquer outro dia dos últimos anos – e depois de ler umas quantas linhas – teria imediatamente arrancado aquelas páginas comigo para fora da livraria. Mas os tempos são mesmo de forte recessão e por isso não comprei – sempre uma insidiosa mentira, esta da crise dos dinheiros, ou não fossem três euros de uma assentada para tabaco, ainda que só de quando em quando.

E porque não comprei, detive-me no café da Fnac por uma boa meia hora, tempo em que li para lá de 30 páginas do retrato escrito da capital feito por Cardoso Pires. Não me alongarei muito mais sobre a coisa. Apenas dizer que me encantou desde a primeira sílaba e que é uma apaixonada e cativante descrição da Lisboa de hoje e de outros tempos, especialmente da de outros tempos. Numas destas (últimas) tardes muito desocupadas conto passar por lá para terminar a leitura e, quem sabe, cometer o deboche de gastar dinheiro em livros.

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«Logo a abrir, apareces-me povoado sobre o Tejo como uma cidade de navegar. Não me admiro: sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, no pico de um miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave, barco com ruas e jardins por dentro, e até a brisa que corre me sabe a sal»

Lisboa, Livro de Bordo (pp. 1), José Cardoso Pires

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os amigos vão dar música neste blogue

Agosto 27, 2007

A vossa atenção. Começa aqui e agora a publicação de uma série de textos, colaborações por mim pedidas a uns quantos amigos bloggers. O desafio foi este: que me digam qual é, até ao momento, a melhor música de 2007. A resposta, bem sei, é extremamente complicada – e disso se dá conta no texto do Hugo Torres, que segue mais abaixo.

Sei, porém, que me agrada a ideia de meter esta gente bonita a escrever sobre acordes e publicar o resultado disso aqui, no blogue. Provavelmente teremos respostas mais e menos complexas, certamente todas elas bem díspares. E, também porque gosto disso, conto seguir com a iniciativa, propondo novos âmbitos (sempre com um piscar de olho cultural) a estas e outras pessoas.

Assim, seguem abaixo as primeiras escolhas e respectivo texto desta série, o do amigo Hugo Torres, do Sozinho a Desenhar. A Encruzilhada, assim lhe chama o autor.

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«Este pedido é impossível. É. A meia dúzia de linhas requisitadas apenas pode tomar lugar num compêndio infindável de desculpas, reticências, interrogações, coisas arrebatadas e olhares indizíveis, roucos, vociferados, atormentados: olhares-montros.
Uma mão que bate na outra que descarrega malas, sem telegrama!, no sexo incapaz, lúcido – pecados acidentais, um desporto de encontros sem lucro, um acontecer dos dedos, uma dádiva, enfim, uma crença.

Uma música não é só uma canção, é o cigarro dos fumadores, o coração dos apaixonados, a rede dos pescadores. Uma música. Que fosse uma, não cabia num mundo. (Num mundo de deus, talvez – que, a ser bem escrito, são muitos.)
A música não é uma competência, nem um carrossel – e nestas duas negações encontramos terceira: a música não é mulher. [Os silogismos não se arquitectam, existem.] A música é um sopro que puxa. (Não empurra.)

Nestes termos, 2007 nunca nasceu. Assim, não chegará a perecer às garrafas de champanhe.

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A magia de um número. De uma palavra, de um ponto. Da cor de uma estrela que já sobreaqueceu e foi engolida pelo mofo dos seus próprios dias. Abbey Road (1969) podia ser o álbum deste escrito. Regressou com uma força inigualável e destaca-se – sem rival!, asseguro-vos – de tudo o resto em voltas à bicicleta. Sim: nestes últimos tempos. Tudo o resto vem e sobra.
Claro que há entusiasmos:
Standing in the Way of Control, canção dos Gossip que titula o álbum de 2006; a opereta ultra-Pop de Mika, Grace Kelly, da estreia Life in Cartoon Motion (2007); o Drums and Guns (2007) – inteirinho! – dos Low.
Por casa: o atrevimento dos Sizo de fazer coisa em condições, com
Nice To Miss You (2007), e a contagiante e libertária Big Three, ou a asfixiante You Ate the Stars. Ah! e aquela canção que é nova mas não vai entrar na notícia Clã – que só chega ao plástico em Outubro –, que é pequenina e a Man’ela se põe aos berros: «Comprei eu, comprei eu, comprei eu…»

Não quero falar mais disto. A liberdade acima de tudo. (Obrigado, Luiz Pacheco.)»

Hugo Torres

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fim do horizonte

Agosto 26, 2007

Acabou-se. Eduardo Prado Coelho morreu – e eu sou dos que consideram que nunca há dignidade na morte, nunca. Lembrá-lo-ei sempre pela escrita certeira das crónicas com que viajava por (e pensava em) todos os lugares da cultura e dessa coisa chamada portugalidade. Várias vezes o admirei, outras tantas discordei com eles. Mas em momento algum deixei de o ler (e isso, por si, diz tudo).

Reproduzo abaixo parte de um dos textos de Prado Coelho que jamais esquecerei, palavras que para sempre associarei àquela barba, àqueles óculos proeminentes e especialmente àquela pena afiada que tantas e tantas vezes pintou o jornal Público e outras paredes assim. Vale MUITO a pena ler. E pensar sobre.

«Porque pertenço a um país onde a ESPERTEZA é a moeda sempre valorizada, tanto ou mais do que o euro. Um país onde ficar rico da noite para o dia é uma virtude mais apreciada do que formar uma família baseada em valores e respeito aos demais. Pertenço a um país onde, lamentavelmente, os jornais jamais poderão ser vendidos como em outros países, isto é, pondo umas caixas nos passeios onde se paga por um só jornal E SE TIRA UM SÓ JORNAL, DEIXANDO-SE OS DEMAIS ONDE ESTÃO.

Pertenço ao país onde as EMPRESAS PRIVADAS são fornecedoras particulares dos seus empregados pouco honestos, que levam para casa, como se fosse correcto, folhas de papel, lápis, canetas, clips e tudo o que possa ser útil para os trabalhos de escola dos filhos … e para eles mesmos. Pertenço a um país onde as pessoas se sentem espertas porque conseguiram comprar um descodificador falso da TV Cabo, onde se frauda a declaração de IRS para não pagar ou pagar menos impostos. Pertenço a um país onde a falta de pontualidade é um hábito. Onde os directores das empresas não valorizam o capital humano. Onde há pouco interesse pela ecologia, onde as pessoas atiram lixo nas ruas e depois reclamam do governo por não limpar os esgotos. Onde pessoas se queixam que a luz e a água são serviços caros. Onde não existe a cultura pela leitura (onde os nossos jovens dizem que é “muito chato ter que ler”) e não há consciência nem memória política, histórica nem económica. Onde nossos políticos trabalham dois dias por semana para aprovar projectos e leis que só servem para caçar os pobres, arreliar a classe média e beneficiar a alguns.

Pertenço a um país onde as cartas de condução e as declarações médicas podem ser “compradas”, sem se fazer qualquer exame. Um país onde uma pessoa de idade avançada, ou uma mulher com uma criança nos braços, ou um inválido, fica em pé no autocarro, enquanto a pessoa que está sentada finge que dorme para não dar-lhe o lugar. Um país no qual a prioridade de passagem é para o carro e não para o peão. Um país onde fazemos muitas coisas erradas, mas estamos sempre a criticar os nossos governantes».

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o cara valente da maria

Agosto 26, 2007

Impossível ficar indiferente à alegria que salta deste vídeo, inevitável sorrir. E que bom que é. Dançamos?

É simples, é bonito, é genuíno pá! Grande Maria Rita.

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o advogado do diabo

Agosto 26, 2007

Para quem, como eu, ficou por casa nesta noite de sábado (no caso, a recuperar das agruras de uma sexta-feira arrojada), a televisão generalista não se portou mal no que respeita à oferta cinematográfica: Antes de Amanhecer, de Linklater (RTP1) ; Tess, de Roman Polanski (RTP2) e O Advogado do Diabo, de Taylor Hackford (TVI), eram as opções.

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«Vanity, definitely my favorite sin»

A escolha recaiu sobre último, com pinceladas do primeiro nos longos intervalos publicitários. É que, apesar de já ter visto ambos, O Advogado do Diabo estava-me bem menos presente na memória que a mágica fita de Richard Linklater. E em boa hora optei por Reeves e Al Pacino. A coisa data de 1997 e é efectivamente um bom filme, inteligente nos diálogos, escorreito na filmagem, bem interpretado. E carregado de frases que, proferidas pelo diabo com uma espécie de pertinácia descuidada, nos ficam a dançar no ouvido.

«A woman’s shoulders are the front lines of her mystique, and her neck, if she’s alive, has all the mystery of a border town. A no-man’s land in that battle between the mind and the body»

«Freedom, baby… is never having to say you’re sorry»

«Guilt is like a bag of fuckin’ bricks. All ya gotta do is set it down»

*Tess, de Polanski, simplesmente não me cativou. E era, no começo da noite, a primeira escolha.

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que fazemos nós lisboa

Agosto 24, 2007

Encontrei os meus recentes dias de inércia, às vezes penosa, às vezes suportável, raras vezes maviosa, retratados nas palavras do poeta O’Neill. «Que fazemos nós, Lisboa, os dois aqui na terra em que nascemos e eu nasci». Os últimos tempos passados na capital – onde, para bem da verdade, devo admitir que não nasci – têm-me ofertado um travo agridoce às vezes difícil.

Entre incertezas profissionais, miradouros sobre o tejo, telefonemas que não chegam, paixões desenfreadas, trabalhos adiados, pequenas celebrações casuais, torpor desocupado e passeios incertos, esta Lisboa tem-se-me mostrado uma montanha russa. Boa para a vida anárquica, como gosto. Menos sã para a saúde financeira e para as vontades de trabalho, que tanto me fazem falta.

Percorro as folhas do caderno e encontro uns riscos a lápis, escritos de há uns dias, aí numa qualquer mesa de café da Baixa. «Com 22 anos [agora já 23], gosto de me perguntar à noite e em silêncio: que queres ser quando fores grande? Depois lembro-me que grande já sou e que espelhos não mentem. Aos 22 anos [agora já 23], nunca tive tantas dúvidas, nunca levantei tantas e tantas vezes a cabeça da almofada sem saber que vou fazer; pior, sem saber que quero fazer.»

No quarto o sol já rareia e das colunas sai Maria Rita. Apercebo-me que voltei ao post-desabafo, coisa inédita nos últimos tempos. Mas que se dane, é como (quase) sempre: deixar os dedos correr no teclado que já não olho e ver que sai. Hoje saiu assim.

E eu nunca desejei tanto um telefonema que não chega como neste final de tarde soalheiro.

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a noite vem do esquecimento da voz

Agosto 23, 2007

«eis a última visão do deserto… um mar triste
uma canção de abandono sobre a boca… o sonho
invadindo a vida que me enche de sede…
… mas vai chegar o inverno
o corpo afrouxar-se-á como o fazem algumas flores
ao cair da noite dobram-se para o fulcro  morno da seiva
e cismam um sonho de ave que só a elas pertence…»

Al Berto, O Medo (pp. 313)

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children of men

Agosto 22, 2007

Criar expectativas em relação a um filme é como imaginar o que se esconde por detrás do bonito papel de embrulho que enfeita os presentes de Natal: vamos sempre à espera do melhor mas o melhor raramente se verifica; e, chegada a meia-noite, sai-nos mais um par de meias oferecido pela tia-avó.

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Children of Men pode muito bem ser apelidado de mais um par de meias da indústria de Hollywood. O filme é mau e a culpa é toda de Alfonso Cuarón. Quando o realizador mexicano pegou no livro homónimo, escrito pela autora inglesa PD James no começo dos 90, não se deve ter apercebido que tinha provavelmente entre mãos uma das melhores histórias de ficção científica pronta para ser contada no cinema.

A acção da coisa, datada de 2006, corre num futuro não muito distante (2021) e num mundo em que a infertilidade feminina se generaliza, onde não há crianças mas apenas adultos cada vez mais adultos. Clive Owen, Julianne Moore e Michael Caine são o trio de actores com que Cuarón tenta segurar o filme. Mas se o primeiro, no papel de protagonista, vai até ao fim, os dois restantes rapidamente desaparecem, tendo participações extremamente curtas na fita. Uns chamar-lhe-ão coragem para “eliminar” esta ou aquela personagem; eu chamo-lhe suicídio fílmico.

childrenofmen1.jpgO argumento arrasta-se neste sentido: uma miúda (Clare Hope-Ashitey, fraquinha actriz..) está grávida e pode cometer a loucura de dar à luz o primeiro bebé em muitos anos. É imigrante e – porque naquele Reino Unido de amanhã os imigrantes são (ainda mais) perseguídos – há que protegê-la. Clive Owen é então colado à moça como um post it a um caderno e lá começam a saga por entre campos de concentração, forças militares, tiros e desgraça total.

Pena que Cuarón tenha achado que a melhor opção seria esta espécie de “road movie” sem carro, em que não largamos nem por um segundo aquela barriga que pode salvar a humanidade. E, enquanto isso, o registo tão falsamente documental (câmara tremida, pingos de sangue na objectiva) passa pela miséria dos guetos que filma como cão por vinha vindimada. Pena, pois, que Cuarón não se tenha lembrado de explorar as implicações sociais do problema proposto – a infertilidade total. Do marasmo, salva-se a fotografia e alguns planos muito bem conseguídos, o que é sobejamente pouco.

Subscrevo aqui parte do que João Lopes – inevitavelmente omnipresente nos últimos posts cinematográficos deste blogue – disse a respeito de Children of Men em Outubro do ano passado:

«Cuarón tem ao seu dispor muitas explosões e efeitos especiais… Mas para fazer o quê? Para transformar esta história inquietante de um futuro próximo em que as mulheres deixaram de ter filhos numa colagem banal de lugares-comuns (mal) copiados de alguns títulos de referência da ficção científica das últimas décadas. Isto porque, até prova em contrário, não basta ter cenários com grandes painéis de vídeo para fazer “à maneira de” Blade Runner…»

E assim se desaproveita uma excelente ideia.

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vícios azuis

Agosto 21, 2007

«que horas serão para lá deste século?
onde estaremos neste momento?
estarei eu em ti ou serás tu que me devoras e comoves?

…teu nome, pronuncia teu nome para que seja impossível esquecer-me do meu. diz-me o teu nome de ontem, quando éramos o reflexo exacto um do outro. toca-me o rosto com o teu nome, ou pousa-o sobre as mãos; debruça-te para dentro de mim e deixa que o segredo do tempo fulmine os ossos...»

Al Berto

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pensar o cinema

Agosto 21, 2007

É sabida a minha admiração por João Lopes, pela forma ímpar como pensa o cinema no nosso país, pela dignidade que, com os seus textos, confere a cada imagem. Porque João Lopes vê, como eu vejo, o «cinema como fenómeno específico, com uma história própria e um património insubstituível». E escreve coisas tão certeiras como esta.

«Este é Bertil Guve, em Fanny e Alexandre (1982), de Ingmar Bergman: acontecem mais coisas neste grande plano do que num dia inteiro de telenovelas.», João Lopes


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cinema: os vivos escrevem sobre os mitos

Agosto 20, 2007

antonioni.jpgDois textos indispensáveis para quem gosta de cinema: The Man Who Asked Hard Questions, escrito por Woody Allen para a revista Time e que versa sobre Igmar Bergman; e The Man Who Set Film Free, saído da mão de Scorsese, dirigido à obra de Antonioni e publicado no NY Times. Ambos valem muito a pena.

*por os textos já não se encontrarem disponíveis gratuitamente nos respectivos sites, os link remetem para duas traduções livres para português do Brasil.

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o homem sisudo de São Martinho de Anta

Agosto 17, 2007

torga.jpgMuito se tem lido e ouvido sobre Miguel Torga nos últimos dias. É que este é o ano do centenário sobre o nascimento de Adolfo Correia Rocha, seu verdadeiro nome. Do transmontano, natural de São Martinho da Anta – Vila Real, pode dizer-se que nada daquilo que o rodeava apontava para que se tornasse num homem de letras. E, de facto, talvez nunca o tenha sido verdadeiramente: acima de tudo, Torga era um homem do campo; mais que poeta, mais que médico, mais que qualquer outra coisa. Torga amava a terra.

Parido num tempo e num espaço em que infância era uma palavra de significado bem diferente do que hoje lhe conhecemos, Miguel Torga emigrou com 13 anos para o Brasil, onde trabalhou na fazenda de um tio, em Minas Gerais. Regressado a Portugal, o escritor ruma a Coimbra, onde frequenta e conclui o curso de Medicina. E por aí se fica, na terra dos estudantes, onde por estes dias foi inaugurada a casa-museu com o seu nome.

Miguel Torga – nome em homenagem a Miguel Cervantes e Miguel Unamuno e sobrenome devido a uma urze típica da sua terra natal – andou emaranhado nas misérias de um país que Lisboa desconhecia e tornou-se no poeta do mundo rural, pejando os seus textos de referências simbólicas e evocações ancestrais. A sua atípica proximidade em relação à natureza, aliado a um carácter peculiar de tão translúcido, fizeram-no carregar títulos de individualista e intransigente. Para que reste tal memória, muito terá contribuído a sua decisão de se manter quase sempre afastado de escolas literárias e dos círculos culturais da época.

Outro dia dei com o meu pai a ler Criação do Mundo, livro de Torga; o meu pai, que nunca foi homem de grandes leituras, a dizer-me que estava a gostar do que lia. E percebi que, com efeito, o Miguel é o escritor daqueles que sentem o pulsar da terra, que a respiram a cada dia.

Terra, minha canção!
Ode de pólo a pólo erguida
Pela beleza que não sabe a pão
Mas ao gosto da vida!

Miguel Torga, excerto do poema A Terra

Em tom de recado dirigido a Saramago, disse Alegre ao Público acerca do homem que repudiava entrevistas e prémios: «Miguel Torga é sempre uma referência, não apenas de Coimbra, mas de Portugal. E faz muita falta a Portugal, neste momento em que, mesmo aqueles que têm grandes responsabilidades intelectuais, parecem duvidar daquela que é a mais velha nação da Europa ocidental».

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regressar a al berto

Agosto 17, 2007

Abrir a antologia de textos do poeta perfeito é correr sempre, mas mesmo sempre, o risco de encontrar palavras aterradoras de tão belas.

«lá fora anoiteceu.
são raras as claridades que do sangue sobem ao rosto. há um lume invisível no teu olhar, uma visão que o espelho me revela: cintilam cristais enquanto dormes, uma árvore cresce nos pulmões. assim construo as paisagens, assim te ofereço a morada de sossego e de prazer. mas tu não vens, porque me és exterior. posso criar um universo inteiro a partir das minhas células, só não posso criar-te a ti, corpo que morre na falsa juventude dos espelhos…»

O Medo (pp. 472), Al Berto

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eça de queiroz

Agosto 16, 2007

ecaqueiroz.jpgHá 107 anos a esta parte, exactamente no dia 16 de Agosto de 1900, morria o poveiro José Maria Eça de Queiroz. E há coisas do diabo: hoje, ao ler o segundo de dois contos – Civilização e José Matias – de um pequeno livrinho de Eça, comprado por 1 euro num alfarrabista, pensei que não poderia deixar passar em claro a próxima data relacionada com o escritor. Eis que vou à costumeira Wikipédia, saber das efemérides deste vulgar 16 de Agosto, e dou-me com a morte do maior realista das letras portuguesas do século XIX, exactamente neste dia, há mais de um século atrás.

Como a maior parte dos garotos portugueses, tomei contacto com Eça de Queiroz – e não Queirós, nada mais que a prova de que o tempo tudo deturpa, nomes incluídos – dizia, tomei contacto com o escritor no ensino secundário, com Os Maias. Desde aí, passei os olhos com mais ou menos atenção por livros como O Primo Basílio, A Tragédia da Rua das Flores e A Cidade e as Serras. Mas, de todos, o que melhor me ficou guardado na memória foi O Crime do Padre Amaro, crítica pungente aos vícios do clero, retrato de um país bucólico. O Crime do Padre Amaro nunca teve, infelizmente, uma digna transposição para o cinema – e as duas tentativas já realizadas dizem bem da apetência da obra para o efeito. Nem a adaptação sul-americana – que conta com Gael García Bernal, é até simpática, mas está longe de se chegar ao que o palavreado certeiro de Eça conta; e muito menos a triste versão portuguesa-contemporânea da coisa, nenhuma delas me convenceu.

Eça nasceu, pois, na Póvoa de Varzim, terra deste bom amigo, em 1845. Estudou Direito em Coimbra, passou por África (Egipto), viveu em Inglaterra – onde trabalhou como cônsul português – e foi morrer a Paris. Era, ao que consta, bom amigo do insular Antero de Quental, também estudante das leis na cidade velha.

Na sua escrita percebe-se um homem extremamente culto. Os seus textos estão pejados de referências a autores clássicos e, acima de tudo, passagens filosóficas. Mas se há coisa que todos relacionamos com Eça é a exímia arte de descrever escrevendo, de nos encher o imaginário.

«Através das janelas desvidraçadas, por onde se avistavam copas de arvoredos e as serras azuis de além-rio, o ar entrava, montesino e largo, circulando plenamente como em um eirado, com aromas de pinheiro bravo. E, lá de baixo, dos vales, subia, desgarrada e triste, uma vos de pegureiro cantando. Jacinto balbuciou: ‘É horroroso!’ Eu murmurei: ‘É campestre!’».

Eça de Queiroz, conto Civilização