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método ou nem tanto

Março 2, 2007

todos os dias me levanto e há um espelho diante cama que me diz bom dia. todos os dias desço as mesmas escadas e faço e bebo um sumo de laranjas que corto. depois leio ao sol, leio nunca mais de uma hora, nunca menos de meia. e há um canário que canta a meu lado. todos os dias almoço. peixe, muitas vezes. gosto de peixe.

os começos de tarde vivem de uma previsibilidade que se divide em dois: ou o carro me leva à cidadezinha onde pouco mais há de interesse que a biblioteca onde me abasteço – não posso com cidades pequenas. são uma ampliação grotesca de aldeia e uma amostra torpe de urbe. não prestam. pois bem, se é esse o itinerário, à casa dos livros segue-se o café sozinho na pastelaria costumeira; outras vezes fico-me pela vila, remexo jornais, experimento notas no órgão, escrevo, fecho os olhos.

todos os dias – ou quase todos, que me não interessa mentir – corro em volta daquele campo de futebol onde foram mais as vezes que perdi que as outras. e enquanto corro penso por que corro e para que corro. e chateia-me, isso. depois de cansado costumava brincar com a bola. sozinho. mas chutei-a para cima de um telhado e por lá ficou, irremediavelmente perdida. todos os dias a vejo, mas não lhe chego. não gosto de alturas nem presto para trepar. sou rasteiro.

todos os dias passo pela pequena biblioteca da vila onde agora estou. aqui a internet medrou por milagre e eu espero sempre que ela me diga o mundo. que mundo? enfim.. todos os dias volto a casa e me entrego às coisas do físico, da transpiração forçada. todos os ocasos são de luta com os meus músculos. gosto de os sentir doridos, vencidos, torpes. néscio triunfo, bem sei.

todas as noites me sento junto dos meus pais e vejo os minutos de televisão que consigo suportar. normalmente termina, a paciência, com o começo das novelas. todas as noites subo as escadas do pequeno castelo que é o meu quarto e me deixo levar pelo cinema. viajo. coberto de roupa, deitado, luzes apagadas, espero sempre que a história de hoje seja melhor que a de ontem. às vezes é. e penso se não daria um belo argumento a história de um menino que, já não sendo, ainda sou e que passa as noites enovelado em cobertores feitos de filmes e almofadas pintadas de sonhos. todas as noites vejo o relógio que não anda e o sono que não vem.

todos os dias, tardes, ocasos, noites, me pergunto que faço. e apago a luz. o espelho continua lá. e eu nele.

11 comentários

  1. que belo texto:)


  2. Venho por este meio publicitar o meu novo espaço:
    http://ofiltro.wordpress.com


  3. ai, o caralho das saudades!…


  4. A travessia do deserto vai já acabar…
    E então irás deparar-te, tenho a certeza, com um oásis de sentimentos e novidades que não vai acabar mais.

    p.s.:idem ibidem (o post de cima).


  5. Não me parece mau método. E está quase a acabar 😉

    Abraço


  6. “campo de futebol onde foram mais as vezes que perdi que as outras”

    Como te compreendemos…


  7. Revi-me no texto. Todas as noites vejo, ou tento ver, alguma televisão com os pais, ou só com a mãe, no sofá da sala. E depois subo, para o quarto, não para mergulhar no cinema, mas, geralmente, para dormir. Adiante, gostei muito do texto, desconhecia esse teu talento. Escreve mais. ;)*


  8. Lindíssimo.
    Sentade, sem espelho, à tua espera, na capital.


  9. “todos os dias ” somos crescidos ,já não temos bola,mas continuamos a jogar.já não temos pais ,mas continuamos a ver televisão.temos muitos livros na biblioteca,mas eles já não nos lêem.todos os dias o nosso espelho nos afasta de nós…
    (…mas também fechamos os olhos e conseguimos sonhar.as histórias vêm ter connosco e o sono vem…)
    Foi muito bom ler a tua história.


  10. […] Junho 23rd, 2007 acabam de entrar-me nas mãos, vindos da pequena biblioteca plantada no tradicional retiro dos finais de semana, dois nacos de papel. O Último Adeus, de Balzac; e As Horas, de Cunningham. […]


  11. que bonito. mesmo. acho que foste o nosso espelho.



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